Não se pretende fazer aqui crítica literária. Sou um cidadão do mundo que sente amor natural pelos livros. Na minha casa as paredes estão cobertas pelos livros. E falo com eles ou melhor eles falam comigo como se fossemos grandes amigos. Revelam-me os seus segredos e os conhecimentos dos seus autores ou contam-me histórias onde se inscrevem valores humanitários universais.

São ensaios, romances, contos e narrativas, peças de teatro, clássicos e modernos, mas também sobre o ambiente ou tecnologias úteis no nosso dia-a-dia. São obras que fazem parte da minha paixão pelos livros e que humildemente indicamos como sinal e guia para quem deseje conhecer conteúdos que julgamos dignos e fiáveis.

E porque desejo transmitir uma análise que embora pessoal seja minimamente correcta nem sempre consigo manter a actualidade que seria normal se a falta de tempo por abraçar outras actividades não o impedisse. Mas aqui estarei sempre que possa.

Gil Montalverne


MEMÓRIAS Rómulo de Carvalho
Coord. Frederico de Carvalho
Fundação Gulbenkian

É com um misto de prazer e muita dificuldade que vou aqui falar mais uma vez daquele a quem chamo “meu querido Professor”. Como devo então falar deste livro de Memórias que ele próprio ia escrevendo a partir de certa altura da sua vida para, como nelas confessa por diversas vezes, ser lido mais tarde pelos seus tetranetos e que está agora à nossa disposição numa cuidada edição, a que o seu filho, Frederico de Carvalho, juntou imagens que se encontravam dispersas e que agora aparecem reunidas no fim da obra? Frederico de Carvalho, construíu também um índice remissivo por pensar que teria utilidade para o leitor que pretendesse localizar facilmente este ou aquele assunto ou nome de personagem, sobretudo importante para quem pretender servir-se das “Memórias” como instrumento de estudo e trabalho. É de facto um prazer para este seu aluno plenamente convencido de que Rómulo de Carvalho, pelo lugar que sempre ocupou na minha vida e na minha memória, a ele lhe devo com toda a certeza muito do que sou. Mas é com dificuldade que encontrarei as palavras exactas para classificar esta obra que certamente representa algo de muito valioso para a história do nosso país durante o período que abrange toda a vida deste professor, pedagogo, poeta e humanista, contada a partir do momento em que nasceu, para o que recorreu naturalmente a consultas dos jornais da época, até aos últimos dias. A propósito recordo que durante as suas aulas no Liceu Pedro Nunes, toda a turma estava concentrada em escutar o que dizia com uma atitude completamente diferente do que acontecia em outras disciplinas. Será que é necessário explicar tal atitude daqueles jovens? Muito simplesmente todos estavam presos das suas palavras na forma como nos explicava os fenómenos da química e da física. Era algo de maravilhoso o que conseguia transmitir-nos. Era a sua eloquência simples e o seu saber mas também a sua bondade e a sua ternura. Foi provavelmente por eu ter pertencido à Estação Emissora do Liceu Pedro Nunes, da qual Rómulo de Carvalho era Director e estava sempre pronto a ajudar-nos e a entusiasmar-nos no que fazíamos, que a minha vida acabou mais tarde por se mudar da Faculdade de Ciências onde cursava os primeiros anos de Engenharia para a paixão da Rádio, tornando-me profissional da C.S. Mas voltemos a este livro de memórias. Não consegui ainda ler na totalidade as 500 páginas onde nos descreve (e a mim me leva a recordar até algumas coisas que tinha esquecido) factos ocorridos durante a sua infância (e como era a vida na cidade ou fora dela como eu ainda conheci), desde o modo como se batia à porta de um prédio com uma peça em forma de mão presa a ela ou um ou mais toques num badalo puxado por um arame (os repenicados para os lados esquerdos dos andares) até ao modo de chamar o merceeiro da rua a partir da janela. O dia-a-dia da vida na cidade, que ele observava e descreve, pode daqui a alguns anos ser uma verdadeira surpresa para quem o ler. E daí a importância histórica que o livro tem se outras não houvesse. Como ele próprio escreve numa simples folha de caderno escolar (reprodução em fac-simile): “Memórias que para instrução e divertimento de seus tetranetos escreveu certa pobre criatura que, entre milhares de milhões de outras, vagueou por este mundo na última centúria do segundo milénio da era de Nosso Senhor Jesus Cristo”, Rómulo de Carvalho está a contar aos seus prováveis leitores (e nem imaginaria que este conjunto de memórias viesse a ser transformado num livro) algo de muito pessoal e íntimo, utilizando as palavras cuidadas da sua escrita única e nunca igualada de um verdadeiro pedagogo que sabia como ensinar e prender a atenção dos seus alunos para lhes transmitir conhecimentos ou, melhor ainda, a forma de os saberem apreender no futuro. Constantemente, ao longo dos vários capítulos que ele próprio definiu, dirige-se particularmente aos tetranetos, citando mesmo muitas vezes o facto de que no tempo deles já nada daquilo subsistirá e constituirá certamente um mistério de como a vida e os costumes eram no seu tempo, como ele a viveu e assim descreve. O livro tem ainda a riqueza de reproduzir fotografias, recortes de jornais, ilustrações, cartões-de-visita (como o da parteira que assistiu ao seu nascimento), cartas, alguns poemas, etc. que ele guardou durante a sua vida e que estão hoje depositados na Biblioteca Nacional. A ideia de escrever as suas memórias apareceu já numa idade adiantada, mais precisamente em Junho de 1985, ao regressar de uma intervenção cirúrgica a que fora sujeito num hospital, embora, como também declara essa ideia lhe teria aparecido de há um certo tempo. E então confessa que “isto só me interessa a mim, e quando nisto falo aos filhos dos netos dos meus netos é na vaguíssima esperança de acharem graça em imaginar a figura de um seu antepassado movimentando-se num ambiente que muito pouco se deverá parecer com o seu, expondo sentimentos que o tempo tornará ridículos. E prossegue dizendo e descrevendo quase o momento do seu nascimento em 24 de Novembro de 1906, data anual que por decisão, no aniversário dos 90 anos, em 1996, foi decidida, pelo reconhecimento do mérito da sua obra, como Dia Nacional da Cultura Científica. Agnóstico, que respeitava as crenças de muitos dos seus amigos e até familiares, desafecto ao salazarismo e crítico do regime ditatorial em que o país viveu durante 50 anos, a sua análise a muitos dos acontecimentos ocorridos desde os tempos da Monarquia até ao 25 de Abril e aos dias difíceis que se lhe sucederam, é todo um rico manancial de factos observados, vividos e sentidos, com a clareza da liberdade de pensamento, não sujeito a ideias ou partidos. Ele próprio apenas, na sua simplicidade e no seu verdadeiro sentido humanista de preocupação com o ser humano, de o compreender, mesmo que tivesse de o aceitar ou criticar. É de facto uma visão do mundo e da história, como poucas vezes tem acontecido ser descrita com o notável pormenor que enriquece o conhecimento. E temos depois António Gedeão, o poeta, que escrevia poemas para si próprio e depois rasgava mas que um dia numa espécie de concurso numa Associação resolve fazer um teste para sentir como reagiam e se surpreende de tal modo que passa a publicar com esse nome que também se transformou num ícone da poesia dos oprimidos ou dos sonhadores desses tempos. Daí para o sucesso das adaptações às canções foi um pequeno passo. E estão registadas no livro as suas transmissões e entrevistas nas Rádios, os recitais, as inúmeras conferências dadas durante a sua vida. Como foi possível que um professor dedicado com todo o coração à arte de ensinar conseguisse preencher de modo tão intenso as suas horas livres com a variedade infinita da escrita e das suas actividades em prol do seu semelhante? O visitante a este espaço dirá certamente que ainda não consegui dizer o que queria. E é verdade. Adivinhava essa dificuldade. E difícil vai ser também escolher os excertos que sempre escolho para estes livros que amo. O livro estará com toda a certeza à vossa espera. E ficarão maravilhados e presos à sua leitura, tanto como eu, de tal modo o interesse se desdobra página a página. Tal como é meu hábito referir-me a Rómulo de Carvalho. Obrigado, meu Querido Professor.

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