Não se pretende fazer aqui crítica literária. Sou um cidadão do mundo que sente amor natural pelos livros. Na minha casa as paredes estão cobertas pelos livros. E falo com eles ou melhor eles falam comigo como se fossemos grandes amigos. Revelam-me os seus segredos e os conhecimentos dos seus autores ou contam-me histórias onde se inscrevem valores humanitários universais.

São ensaios, romances, contos e narrativas, peças de teatro, clássicos e modernos, mas também sobre o ambiente ou tecnologias úteis no nosso dia-a-dia. São obras que fazem parte da minha paixão pelos livros e que humildemente indicamos como sinal e guia para quem deseje conhecer conteúdos que julgamos dignos e fiáveis.

E porque desejo transmitir uma análise que embora pessoal seja minimamente correcta nem sempre consigo manter a actualidade que seria normal se a falta de tempo por abraçar outras actividades não o impedisse. Mas aqui estarei sempre que possa.

Gil Montalverne

ALABARDAS, alabardas
ESPINGARDAS, espingardas
José Saramago

Este romance inacabado que o nosso Nobel da Literatura deixou no seu computador com trinta páginas apenas, que ia “refundindo e não reescrevendo” como confessava nas notas do seu Caderno a 16 de Setembro de 2009, sempre na intenção de o vir a terminar mas que o fim traiçoeiro, que já se avizinhava, não permitiu, é mais uma jóia  que se junta à sua obra grandiosa, sem dúvida das maiores da literatura mundial e da nossa. Quando o livro chegou às minhas mãos e comecei a sua leitura, não parei senão quando cheguei ao fim. E lembrei-me de imediato de algumas daquelas vozes que aqui e ali se ouviam, de vez em quando, ao citar a escrita de Saramago, intitulando-a difícil de acompanhar, por falta de pontuação ou excesso dela, a incomodidade dos poucos períodos ou parágrafos, enfim uma série de desculpas para não querer compreender a grandiosidade das suas palavras e das suas ideias. É que sucedeu-me precisamente o contrário. Aliás, como é sabido e sempre o afirmei, nunca tive qualquer dificuldade na sua leitura. Mas nestas páginas, do que viria a ser o seu próximo romance, senti uma tal fluidez no seu original processo literário, que não consigo compreender como foi possível alguém dizer que tinha necessitado de voltar atrás na leitura de uma ou outra frase para retomar o sentido. Tudo é tão claro e evidente na exposição dos diálogos, quando existem, como na explanação do pensamento da personagem principal, de tal forma a escrita de Saramago me pareceu até caminhar para novos meios de nos apresentar as suas ideias, o seu pensamento, aquilo que afinal sempre constituiu a mensagem que desejava transmitir aos outros e que consistia, conforme muitas vezes afirmou, a necessidade de agitar consciências, levá-las a pensar, a reflectir, a não serem indiferentes ao que nos rodeia na nossa passagem pelo mundo. E dito isto, nada tendo ainda referido sobre a história do romance em si e do possível enredo que haveria, dadas as circunstâncias, de constituir, perguntei-me muitas vezes que outras palavras poderia aqui deixar diferentes do muito que tenho escrito sobre José Saramago e as suas obras. Eu que até já o saudei, tratando-o por tu, aqui neste mesmo espaço, em 18 de Junho de 2011, sinto séria dificuldade em encontrar algo de novo para além do que já disse nesta mesma peça. Se me fosse permitido, diria que ele é, para mim, o maior escritor da literatura do meu tempo. Os seus livros foram e são, para mim, objectos de culto onde encontro não só as respostas para muitas das minhas perguntas como a ajuda para me interrogar sobre outras que continuo a fazer: Que sociedade é esta onde falta o sentido da humanidade e o respeito pelo outro. E o direito a ser diferente, sem que tal interfira na liberdade desse outro? Até quando a falta de ética no comportamento humano? Questões que me preocupam de facto. Mas vamos então ao livro. A história de um simples empregado numa fábrica de armamento, apaixonado por peças de artilharia, separado da sua mulher que nunca concordara com aquele tipo de emprego do marido, é a base para Saramago reflectir sobre uma questão que desde sempre, como confessa no seu caderno, o preocupara. Porque razão nunca tinha acontecido uma greve numa fábrica de armamento. E havia também, como escreve, o estranho caso de uma bomba que não explodira na guerra civil de Espanha, tendo sido encontrada dentro dela uma mensagem dizendo isso mesmo. Esta bomba nunca vai explodir. Embora também confesse que não se recordava bem onde teria lido tal notícia, o facto é colocado durante um telefonema que Felícia faz ao marido, incitando-o a tentar junto da administração da fábrica onde Artur Paz Semedo (curioso o nome dado ao personagem principal) trabalha, uma autorização para investigar nos arquivos as possíveis vendas efectuadas algumas décadas atrás. E vamos assistindo a uma mudança quase radical nas relações daquele casal, devido à transformação que vai sendo feita na atitude laboral de Artur Paz Macedo mais concordante com a personalidade de Felícia. Mas o importante no romance é mais uma vez a chamada de atenção, afinal tão do agrado do autor, para a persistente existência dos interesses mais obscuros dos políticos nas guerras que provocam e alimentam, nos lucros adjacentes e na completa desumanização da sociedade ao longo dos tempos. Até quando? Poderemos perguntar. Infelizmente não o sabemos e por certo Saramago, se tivesse tido a oportunidade de acabar este romance, também não nos daria a resposta. Mas senti uma tristeza enorme por ele não o ter terminado e poder dar-nos algo mais a juntar ao muito que nos deixou e que ficará para sempre nas bibliotecas dos seus leitores, espalhados pelos quatro cantos do mundo. Essa tristeza, confesso, não retira o enorme prazer de o ter lido mais uma vez na sua prosa inconfundível. O livro  contem ainda dois interessantes textos de duas personalidades muito ligadas à vida e obra de José Saramago. O poeta e ensaísta espanhol Fernando Gómez Aguilera faz uma análise bem construída de como este último livro se insere na obra completa do nosso Nobel da Literatura. O jornalista italiano Roberto Saviano consegue colocar-se no papel de alguém que também conheceu uma série de pessoas semelhantes à personagem criada por Saramago. “Também eu conheci Artur Paz Semedo. Não trabalhava numa fábrica de armamento… e o seu nome era Tim… Rodolfo…Christian… etc.”. E acaba por contar-nos histórias curiosas desses seus "conhecidos". Enfim, aqui está portanto “Alabardas”, o último romance (o inacabado) de José Saramago. Mas tenho esperanças de continuar a falar dele neste meu Amor Pelos Livros.


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