ALABARDAS, alabardas
ESPINGARDAS, espingardas
José Saramago
Este romance inacabado que o nosso Nobel da Literatura deixou no seu computador
com trinta páginas apenas, que ia “refundindo e não reescrevendo” como
confessava nas notas do seu Caderno a 16 de Setembro de 2009, sempre na
intenção de o vir a terminar mas que o fim traiçoeiro, que já se avizinhava,
não permitiu, é mais uma jóia que se
junta à sua obra grandiosa, sem dúvida das maiores da literatura mundial e da
nossa. Quando o livro chegou às minhas mãos e comecei a sua leitura, não parei
senão quando cheguei ao fim. E lembrei-me de imediato de algumas daquelas vozes
que aqui e ali se ouviam, de vez em quando, ao citar a escrita de Saramago,
intitulando-a difícil de acompanhar, por falta de pontuação ou excesso dela, a
incomodidade dos poucos períodos ou parágrafos, enfim uma série de desculpas
para não querer compreender a grandiosidade das suas palavras e das suas
ideias. É que sucedeu-me precisamente o contrário. Aliás, como é sabido e
sempre o afirmei, nunca tive qualquer dificuldade na sua leitura. Mas nestas
páginas, do que viria a ser o seu próximo romance, senti uma tal fluidez no seu
original processo literário, que não consigo compreender como foi possível
alguém dizer que tinha necessitado de voltar atrás na leitura de uma ou outra
frase para retomar o sentido. Tudo é tão claro e evidente na exposição dos
diálogos, quando existem, como na explanação do pensamento da personagem
principal, de tal forma a escrita de Saramago me pareceu até caminhar para
novos meios de nos apresentar as suas ideias, o seu pensamento, aquilo que
afinal sempre constituiu a mensagem que desejava transmitir aos outros e que
consistia, conforme muitas vezes afirmou, a necessidade de agitar consciências,
levá-las a pensar, a reflectir, a não serem indiferentes ao que nos rodeia na
nossa passagem pelo mundo. E dito isto, nada tendo ainda referido sobre a
história do romance em si e do possível enredo que haveria, dadas as
circunstâncias, de constituir, perguntei-me muitas vezes que outras palavras
poderia aqui deixar diferentes do muito que tenho escrito sobre José Saramago e
as suas obras. Eu que até já o saudei, tratando-o por tu, aqui neste mesmo
espaço, em 18 de Junho de 2011, sinto séria dificuldade em encontrar algo de
novo para além do que já disse nesta mesma peça. Se me fosse permitido, diria
que ele é, para mim, o maior escritor da literatura do meu tempo. Os seus
livros foram e são, para mim, objectos de culto onde encontro não só as
respostas para muitas das minhas perguntas como a ajuda para me interrogar
sobre outras que continuo a fazer: Que sociedade é esta onde falta o sentido da
humanidade e o respeito pelo outro. E o direito a ser diferente, sem que tal
interfira na liberdade desse outro? Até quando a falta de ética no
comportamento humano? Questões que me preocupam de facto. Mas vamos então ao
livro. A história de um simples empregado numa fábrica de armamento, apaixonado
por peças de artilharia, separado da sua mulher que nunca concordara com aquele
tipo de emprego do marido, é a base para Saramago reflectir sobre uma questão
que desde sempre, como confessa no seu caderno, o preocupara. Porque razão
nunca tinha acontecido uma greve numa fábrica de armamento. E havia também,
como escreve, o estranho caso de uma bomba que não explodira na guerra civil de
Espanha, tendo sido encontrada dentro dela uma mensagem dizendo isso mesmo.
Esta bomba nunca vai explodir. Embora também confesse que não se recordava bem
onde teria lido tal notícia, o facto é colocado durante um telefonema que
Felícia faz ao marido, incitando-o a tentar junto da administração da fábrica
onde Artur Paz Semedo (curioso o nome dado ao personagem principal) trabalha,
uma autorização para investigar nos arquivos as possíveis vendas efectuadas
algumas décadas atrás. E vamos assistindo a uma mudança quase radical nas
relações daquele casal, devido à transformação que vai sendo feita na atitude
laboral de Artur Paz Macedo mais concordante com a personalidade de Felícia.
Mas o importante no romance é mais uma vez a chamada de atenção, afinal tão do
agrado do autor, para a persistente existência dos interesses mais obscuros dos
políticos nas guerras que provocam e alimentam, nos lucros adjacentes e na
completa desumanização da sociedade ao longo dos tempos. Até quando? Poderemos
perguntar. Infelizmente não o sabemos e por certo Saramago, se tivesse tido a
oportunidade de acabar este romance, também não nos daria a resposta. Mas senti
uma tristeza enorme por ele não o ter terminado e poder dar-nos algo mais a
juntar ao muito que nos deixou e que ficará para sempre nas bibliotecas dos
seus leitores, espalhados pelos quatro cantos do mundo. Essa tristeza,
confesso, não retira o enorme prazer de o ter lido mais uma vez na sua prosa
inconfundível. O livro contem ainda dois
interessantes textos de duas personalidades muito ligadas à vida e obra de José
Saramago. O poeta e ensaísta espanhol Fernando Gómez Aguilera faz uma análise
bem construída de como este último livro se insere na obra completa do nosso
Nobel da Literatura. O jornalista italiano Roberto Saviano consegue colocar-se
no papel de alguém que também conheceu uma série de pessoas semelhantes à
personagem criada por Saramago. “Também eu conheci Artur Paz Semedo. Não
trabalhava numa fábrica de armamento… e o seu nome era Tim… Rodolfo…Christian…
etc.”. E acaba por contar-nos histórias curiosas desses seus "conhecidos".
Enfim, aqui está portanto “Alabardas”, o último romance (o inacabado) de José
Saramago. Mas tenho esperanças de continuar a falar dele neste meu Amor Pelos
Livros.
Para ler um excerto desta obra clique aqui