Não se pretende fazer aqui crítica literária. Sou um cidadão do mundo que sente amor natural pelos livros. Na minha casa as paredes estão cobertas pelos livros. E falo com eles ou melhor eles falam comigo como se fossemos grandes amigos. Revelam-me os seus segredos e os conhecimentos dos seus autores ou contam-me histórias onde se inscrevem valores humanitários universais.

São ensaios, romances, contos e narrativas, peças de teatro, clássicos e modernos, mas também sobre o ambiente ou tecnologias úteis no nosso dia-a-dia. São obras que fazem parte da minha paixão pelos livros e que humildemente indicamos como sinal e guia para quem deseje conhecer conteúdos que julgamos dignos e fiáveis.

E porque desejo transmitir uma análise que embora pessoal seja minimamente correcta nem sempre consigo manter a actualidade que seria normal se a falta de tempo por abraçar outras actividades não o impedisse. Mas aqui estarei sempre que possa.

Gil Montalverne

SIMONE DE BEAUVOIR
O SEGUNDO SEXO

A reedição em Portugal daquele que é talvez, para muitos de nós, o mais famoso livro de Simone de Beauvoir, continua a ser a prova indiscutível da necessidade de dar a conhecer ou relembrar no mundo actual os princípios de igualdade de género e solidariedade que a autora sempre defendeu e que constituíram o seu universo filosófico. Para aqueles que como eu recordamos os dias que marcaram o desenrolar dos movimentos de Maio de 68, nos quais os jovens reclamavam a igualdade como direito universal, têm presente a sua intervenção nessas manifestações, juntamente com Sartre, ambos lutando sempre por aquilo que eram as suas convicções mais prementes, um mundo onde o indivíduo não seja apenas um número mas onde todos possam ser activos intervenientes na história colectiva. E não é por acaso que trazemos aqui Sartre. É que a vida amorosa que ambos tiveram não os obrigava a qualquer submissão de qualquer das partes e muito menos da mulher em face do homem. Coerente com o seu pensamento, Simone vivia aquilo que defendia e que expressa com veemência nesta obra agora reeditada. Ela não deseja ser apenas o ”outro”, como os homens consideraram a mulher ao longo de toda a história, como se houvesse e de facto assim acontecia na prática um ser diferente, provavelmente ao qual eram atribuídas funções que eles não queriam desempenhar nem podiam, assim julgavam. Simone defende que esse outro existe mas apenas se justificar o ser autónomo com a condição feminina. Esta errada condição feminina não é, não pode ser, como era considerada, referente apenas à natureza biológica da mulher, até aí imposta pela sociedade, mas muito mais do que isso, a nota autónoma da diferença que pode caracterizar uma classe. Simone era de facto na sua vida privada, na vida amorosa, na actividade literária que não se cansava de exercer, em livros e revistas várias, o verdadeiro ícone do feminismo e que ainda perdura nos dias de hoje, onde apesar do muito que a mulher já alcançou nos últimos anos, a igualdade plena no que diz respeito aos poderes que lhe possam ser conferidos na sociedade ainda não foi alcançada. E por isso, esta reedição da sua obra máxima, “o Segundo Sexo”, se tornará certamente num êxito que não pode passar despercebido às gerações actuais. A destruição dos mitos que foram criados, das concepções mas também dos erros defendidos até por nomes famosos da literatura mundial, os princípios filosóficos mas também a psicanálise, o que pode significar realmente a mulher, o que ela é e pode representar nas sociedades modernas, mas que na maior parte dos casos ainda não alcançou, tudo isso ali está. Acompanhamos todo o caminho percorrido pela condição feminina desde o Antigo Egipto, Atenas ou Roma, até à Idade Média onde a mulher conservou ainda alguns privilégios, a dicotomia do cristianismo, a chegada do Renascimento, a Idade Moderna ou a simples conquista do direito de voto e os primeiros movimentos feministas soviéticos. O percurso, ao longo de todas essas épocas e etapas, vivido pela chamada condição feminina é descrito e estudado minuciosamente. Ela que até escreve no início desta sua obra ter hesitado “muito tempo em escrever um livro sobre a mulher. O tema é irritante, principalmente para as mulheres. E não é novo.” conseguiu fazer uma análise histórica e filosófica da presença da mulher em toda a série de actividades que desempenhou ou a fizeram desempenhar mas sempre com carácter de subalternidade e não na igualdade de poderes e direitos pela qual lutará até aos seus últimos dias. 
Desmontando o mito milenar do "eterno feminino", uma frase estabelece uma ruptura irreversível: "Ninguém nasce mulher, torna-se mulher". A dualidade dos sexos nunca deveria ter levado a que o homem saísse sempre o vencedor sobre a mulher. Simone de Beauvoir e a sua obra muito contribuíram, a par de outras corajosas personalidades, para que este estado de coisas tenha melhorado mas a plenitude da sua razão ainda não foi alcançada. E por isso existem uma série de movimentos feministas, um pouco por todo o lado, até nos países mais radicais do extremo oriente onde a luta prossegue mas onde uma jovem de 17 anos, a paquistanesa Malala Yousafzai, defendendo, entre outros direitos, precisamente os da educação das jovens meninas, lutando até às mais atrozes consequências, consegue obter o Prémio Nobel da Paz em 2014. Todos julgamos e desejamos que esteja em vias de se formar uma nova concepção da sociedade baseada na democracia plena, uma aliança do socialismo e da liberdade. Porque socialismo e liberdade são inseparáveis. E como diz Simone “ uma volta ao passado não é mais possível nem desejável. O que se deve esperar é que, por seu lado, os homens assumam sem reserva a situação que se vem criando; somente então a mulher poderá viver sem tragédia. Então poderá ver-se realizado o voto de Laforgue: "Ó moças, quando sereis nossos irmãos, nossos irmãos íntimos sem segunda intenção de exploração? Quando nos daremos o verdadeiro aperto de mãos?" (…) "Então ela será plenamente um ser humano (e citando Arthur Rimbaud) "quando se quebrar a escravidão infinita da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem — até hoje abominável — tendo-lhe dado a alforria ".

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