CAPITÃS DE ABRIL
Ana Sofia Fonseca
As comemorações dos 40 anos do 25 de Abril trouxeram à actualidade
literária um enorme conjunto de obras que focaram os mais diversos aspectos do
significado das conquistas de Abril nesse grande momento da nossa história
recente. Como era viver nos tempos da ditadura, a polícia política, a censura
na comunicação social, os livros proibidos, as inaugurações de fachada, a
guerra colonial, a luta académica, os exilados, tudo isto e muito mais a que
estávamos sujeitos antes dessa data memorável. Publicaram-se livros de
entrevistas, biografias e os mais variados ensaios políticos sobre o tema. Escolhemos
para este nosso espaço, onde não podíamos deixar de assinalar a efeméride, um
livro de uma jornalista que nos conta a revolução dos cravos no feminino. As
Capitãs de Abril revela-nos, pela primeira vez, quem foram, o que fizeram e
como viveram as mulheres dos militares que fizeram a revolução que derrubou a
maior ditadura da história europeia. De Ana Coucello, casada com o adjunto
operacional de Otelo Saraiva de Carvalho no Regimento de Engenharia 1 na
Pontinha, a Natércia Salgueiro Maia ou Teresa Alves, respectivamente viúvas do
grande Capitão de Abril Salgueiro Maia e do Major Vítor Alves, são descritos os
momentos decisivos dos dias que antecederam aquela célebre madrugada vividos
por 13 das mulheres que a jornalista conseguiu entrevistar para nos dar a
conhecer exemplos de muita coragem e abnegação que também eram vividos em
família numa certa clandestinidade. Ana Sofia Fonseca relata-nos com
extraordinária precisão como elas viviam, algumas nos locais onde se travava a
luta contra os chamados “turras” nas antigas colónias portuguesas, sempre
aguardando a chegada dos maridos que tinham partido de manhã para a frente
militar, espingarda na mão e umas tantas granadas à cintura. Será que
voltariam? Nos ouvidos o som das bombas a rebentar lá longe ou a passagem do
helicóptero que transportava feridos para o hospital próximo. Será que ele vai
ali? Outras em Lisboa, fingindo que nada se passava, escondendo o receio
daquilo que se preparava, visitando com eles locais chave que haveriam de dar
que falar. Enfim, nas horas antes daquela madrugada, as palavras dos futuros
heróis que, embora confiantes, não podiam deixar de transparecer o receio de
que “a coisa” corresse mal. ”Olha, é esta noite” diz o marido a Teresa Alves.
“É esta noite o quê” pergunta Teresa ao Vítor. E ouve de imediato a resposta:
“A revolução que temos andado a preparar”. “É hoje. Liga o rádio e se ouvires
aquela canção do Adeus já sabes que começou”. E lá ficavam presas, de olhos
fixos no pequeno transístor aguardando a canção que tinham ouvido dias antes no
Festival televisivo. Mas para Dina que sempre acompanhara o marido nas missões
no ultramar, Otelo foi ainda mais preciso: “Se ouvires o nosso comunicado é
porque tudo correu bem”. “- E o que é que acontece se correr mal”. Pergunta Dina,
escondendo o desassossego que a enche. “Eh pá, sei lá? Enfiam-me no Tarrafal e
é esta a última vez que aqui estamos a falar”. Todas estas situações nos são
contadas neste livro com grande precisão. Como se estivéssemos a presenciá-las
no foro íntimo das personagens da história memorável que foi o 25 de Abril.
Facto curioso que a autora resolveu e muito bem incluir é o de existirem
duas mulheres que sem serem casadas com militares de Abril desempenharam também
o papel de “Capitães” ao lado das restantes. É o caso de Celeste Caeiro,
empregada num self-service a colocar
flores nas mesas dos clientes. Naquela manhã, o gerente mandou-a para casa pois
o estabelecimento ia fechar devido a algo que se passava nas ruas. E que
levasse as flores com ela pois já não eram precisas. Celeste agarrou nelas e
foi de metro para a baixa. À saída, soldados por todo o lado. Aproxima-se de um
e pergunta: “O que é que estão aqui a fazer?”. “ – Uma revolução”. É a
resposta. “- Precisam de alguma coisa? Como é que posso ajudar?”. “Se tiver um
cigarrinho...um cigarro calhava bem.”. “- Bem gostava mas nunca fumei... Olhe,
tome lá um cravo que tanto se oferece a uma senhora com a um senhor.” O militar
agradece e põe o cravo no cano da G3. Celeste distribui o molho inteiro pelos
militares com que se cruza. Gosta da Ideia – confessa mais tarde – antes cravos que
balas. E o exemplo foi seguido por outras vendedeiras de flores nesse dia e nos
seguintes. Quem diria que foi graças à Celeste que apareceu o nome de
“Revolução dos Cravos”.
O outro caso, também de uma mulher não casada com um militar mas também
Capitã de Abril é o de Clarisse Guerra, nessa época locutora do Rádio Clube
Português e que, encontrando-se em casa quando às 4 da manhã é avisada por uma
colega de que ia haver um revolução, corre a ligar a telefonia e vai ouvindo os
comunicados lidos de quando em vez pelo seu colega Joaquim Furtado. “Aqui posto de comando do Movimento das
Forças Armadas...”. Corre para o telefone, avisa alguns amigos e sai de
casa com a filha, a caminho do Rádio Clube, ali a 10 minutos da casa onde mora,
em Campolide. Vai
para a mesa de locução, passa canções e músicas censuradas, mas são eles, as
vozes masculinas, o Joaquim e o Luís Filipe Costa que vão lendo os comunicados.
Então e eu? Pergunta. Até que finalmente, cerca das 2 e meia da tarde, Joaquim
Furtado olha para ela e pergunta-lhe se quer ler. Clarisse responde que sim
claro. O chefe dos noticiários confirma “até é bom uma mulher ler”. Clarisse
Guerra respira fundo, afasta os nervos, nunca antes lera noticiários. O
documento acabara de chegar da Pontinha. E ela vai ler as palavras dos heróis.
A única mulher a ler aos microfones de uma estação de rádio um comunicado do
Movimento das Forças Armadas. (A única, sabemo-lo bem, pois na E.N. onde eu era
colega dela, apenas às vozes masculinas foi dada essa oportunidade, eu, um deles).
Mais do que possamos acrescentar sobre este livro que ficará por certo para a
história do 25 de Abril poderá ser lido nas suas páginas e é isso que
recomendamos.