Não se pretende fazer aqui crítica literária. Sou um cidadão do mundo que sente amor natural pelos livros. Na minha casa as paredes estão cobertas pelos livros. E falo com eles ou melhor eles falam comigo como se fossemos grandes amigos. Revelam-me os seus segredos e os conhecimentos dos seus autores ou contam-me histórias onde se inscrevem valores humanitários universais.

São ensaios, romances, contos e narrativas, peças de teatro, clássicos e modernos, mas também sobre o ambiente ou tecnologias úteis no nosso dia-a-dia. São obras que fazem parte da minha paixão pelos livros e que humildemente indicamos como sinal e guia para quem deseje conhecer conteúdos que julgamos dignos e fiáveis.

E porque desejo transmitir uma análise que embora pessoal seja minimamente correcta nem sempre consigo manter a actualidade que seria normal se a falta de tempo por abraçar outras actividades não o impedisse. Mas aqui estarei sempre que possa.

Gil Montalverne

palavras do
LIVRO DO DESASSOSSEGO
Fernando Pessoa
Edição Libório Manuel Silva

Editora Centro Atlântico

Perante o verdadeiro encantamento que me foi proporcionado ao voltar a ler numa recentíssima edição, seleccionada e apresentada por Libório Manuel Silva, alguns das muitas centenas de trechos, descobertos até agora, aos quais Fernando Pessoa – os poucos ainda publicados em vida em revistas da sua época – chamava "do Livro do Desassossego (em preparação)", não podia deixar por mais tempo a sua colocação neste meu espaço de Amor pelos Livros. E por isso aqui foram colocadas umas simples palavras de apresentação que alinhavei da melhor maneira possível para confessar que não me era fácil, nem rápido, escrever como habitualmente faço o que pensava sobre este novo Livro do Desassossego (creio que existem pelo menos 8 edições anteriores). Argumentando que me seria por exemplo mais fácil escrever sobre uma nova edição dos Lusíadas – o que de facto é verdade - confessava a minha grande admiração pelos trabalhos de Pessoa que sempre estiveram comigo (Obras Completas de Edições Ática) desde muito jovem, a tal ponto que interiorizava o excepcional desafio mental que ele nos proporciona. Acontecia mesmo que muito do que eu escrevia nesses tempos e até alguma poesia (ou não fossemos um país de poetas) que então publicava em alguns jornais tinham uma forte influência de Pessoa, o que poderia até considerar como algo elogioso mas não me agradava pois o sentia como falta de originalidade. Permito-me – espero que não me levem a mal – citar aqui uma dedicatória colocada no primeiro volume das Obras Completas de Fernando Pessoa, ed. Ática, pelo meu amigo F.A.J.: “Este teu pobre amigo, pela sua mediocridade de espírito, não pode compreender, tão profundamente quanto ela merece, a poesia de Fernando Pessoa. Talvez tu, como verdadeiro poeta que és, saibas reconhecer quão sublime ela é e me possas ajudar a compreendê-la melhor”. Enfim, para além do exagero do amigo, quanto às minhas virtudes de poeta, o ter notado que algo de mim pertencia a Pessoa. Eu poderia estar, creio agora, a rever-me nele, através dos seus heterónimos, o que não é de estranhar se pensarmos no extraordinário mundo das mais variadas sensações que a sua poesia nos transmite.

Mas falemos então dos trechos do seu sempre inacabado Livro do Desassossego. Apesar de ter a noção de que nada posso juntar ao que tem sido escrito por ilustres nomes do nosso meio literário e cultural, apenas me limito a referir a intensidade de emoções e algo dos pensamentos que atravessam a minha mente, quando os leio. Nesta nova edição agora publicada, relembrei alguns que já conhecia e encontrei outros mas percorri aquelas 110 páginas com aquele estranho sentimento de quem constrói e destrói pedaços de vida, momentos de sempre inacabada visão do mundo circundante e talvez até como é citada no brilhante prefácio de Libório Silva, esta frase de Pessoa “… aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade”. Para os que eventualmente desconheçam, os nomes de Bernardo Soares ou Vicente Guedes com que Fernando Pessoa assinou alguns dos seus famosos trechos que publicou ou guardava e ainda muitos se conservam na famosa arca, repleta de inéditos que se espera um dia venham todos a ser conhecidos, esses nomes não são heterónimos de Pessoa como é o caso de Alberto Caeiro ou Ricardo Reis. São, como se lê na frase atrás citada semi-heterónimos. E, que ousadia a minha, arrisco-me a dizer que sempre senti que os trechos do Livro do Desassossego como muitos outros, ainda não publicados mas conhecidos, nos transmitem muito mais do pensamento e da pluri-genialidade de Fernando Pessoa do que o melhor da sua poesia, publicada em seu nome ou nos dos seus heterónimos. Portanto a minha ousadia foi apenas dizer aqui que é “ali” que o encontro, que estou com ele ou dentro dele, embora muitas vezes com dificuldade em o compreender, até porque, como também ele confessa “o que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”. Portanto interrogo-me se, quando o leio, estarei realmente a lê-lo ou a ler-me a mim próprio. Talvez. Mas não posso considerar isso uma particularidade minha. Quando o lemos, acontece por vezes não absorvermos totalmente o que está a escrever quem está a escrever. Tão depressa é a nuvem como a sombra dela e ambas podem desaparecer como por encanto. Penso que a leitura de Fernando Pessoa é para todos os que o admiram – e quase resvalava no dizer “veneram” – a descoberta do grande mistério daquele imaginário que em nós existe ou que supomos existir dentro e fora de nós próprios. Estas “Palavras do Livro do Desassossego” numa nova edição ilustrada terá com toda a certeza um sucesso merecido e digno de ser assinalado. E por isso aqui está.

Podem ler neste nosso espaço alguns dos trechos que Fernando Pessoa escreveu com o heterónimo Bernardo Soares para o "seu" sempre inacabado "Livro do Desassossego" - e que eu próprio escolhi - para que despertem o entusiasmo pela leitura da criteriosa selecção feita por Libório Silva nesta obra agora editada e da qual nos autorizou a publicar um dos trechos que ali vão encontrar devidamente assinalado.

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