QUERENÇA
Fernando Correia da Silva
Fernando
Correia da Silva, o meu grande amigo Fernando, autor de assinalável obra
literária e poética, merecedora dos elogios de grandes nomes do nosso meio
artístico-literário como por exemplo António José Saraiva, está hoje aqui
presente pelas piores razões: deixou-nos, à família e aos amigos, no passado
dia 18 de Julho. Já há muito tempo que ele devia figurar aqui mas como várias
vezes tenho afirmado não me é possível colocar neste espaço todos os livros e
autores que gostaria nele figurassem. E para além da falta de tempo para o
fazer numa modesta análise minimamente correcta, tenho dado preferência às
edições ou reedições mais recentes. E apesar de uma importante actividade
literária que Fernando Correia da Silva mantinha regularmente desde que em 1998
criou o site Vidas Lusófonas (clique e visite), sendo responsável pela coordenação de 169
biografias de vários autores nacionais e estrangeiros, em muitos casos escritas
por ele próprio com uma originalidade que lhe era peculiar, publicara o seu
último romance em 1996. E assim apesar de ter pensado por várias vezes colocar
aqui alguns dos seus livros que estão em lugar de destaque numa das minhas
estantes, o tempo foi passando até que o inesperado aconteceu. Tínhamos falado
uma semana antes, recordando até a coincidência da nossa idade. A propósito do
seu aniversário a 28 de Julho, cerca de um mês antes do meu, ainda me atirou a
costumeira frase “Muito respeitinho pois sou um mês mais velho do que tu”.
Sempre bem-disposto, nada faria antever o que se passaria. A nossa amizade
nasceu em Campo de Ourique, quando da entrada para o primeiro ano no Liceu
Pedro Nunes. Camaradas de turma, logo se iniciou uma amizade que iria manter-se
nas actividades extra-escolares, entretenimentos e excursões, culminando na
adopção dos mesmos ideais que cedo nos levaram ao MUD Juvenil. Cedo começariam
as perseguições da PIDE que, ao contrário do que lhe aconteceu a ele, não
conseguiam encontrar-me devido à diferença entre o meu nome familiar e o
oficial. Preso em Caxias com 17 anos, viria a publicar dois anos depois
COLHEITA,
que logo me ofereceu, um livro de poemas nos quais apresenta já muito
das suas preocupações de carácter social, ao mesmo tempo que se compreende
porquê futuramente na sua obra literária haveria de sempre coexistir uma forma
algo poética de se exprimir. O Fernando não poderia nunca deixar de ser ele
próprio, juntando, como poucos o souberam fazer, o coração e a razão, o que
gostaria de ser e a realidade do que tinha de ser, o eu e o não eu, os outros,
sempre os outros. E por isso coloco hoje aqui o seu romance que no meu entender
melhor o define. Em QUERENÇA, que mais tarde viria a ser adaptado ao cinema por
seu filho Edgar Feldman, Fernando Correia da Silva é ao mesmo tempo o autor e o
narrador que criou como personagem principal. É que, curiosamente, Júlio Vera,
o personagem é um contador de histórias que narra acontecimentos da sua vida,
episódios e amigos da sua juventude e tem igualmente premonições de algo que
virá a acontecer. E aqui e ali as palavras correm com um fervor poético. Júlio
Vera joga com elas como se de poesia se tratasse. O autor está dentro e fora da
Querença, aquela querença que é afinal o seu território ou foi e será. E se ao
analisar o personagem-narrador que Fernando criou, foram muitos os que viram
neste seu romance algo de auto-biográfico, como aliás se intui dentro da
própria narrativa ficcionada, nele acontecem também nomes e personagens reais
com os quais o autor conviveu. E não seria apenas O’Neill, Agostinho Neto ou
Pinto de Andrade com os quais se cruzam em Lisboa a personagem de Querença e o
autor que poderiam criar a suposta verdade. Leio Júlio Vera e estou ao mesmo
tempo a ouvir as palavras que muitas vezes escutei deste meu grande amigo,
fossem elas durante umas voltas pelas ruas de Campo de Ourique, sentado num
café da Ferreira Borges ou num banco do jardim da Parada. Da situação política
que atravessávamos, nosso tema preferido, lançava de repente com o seu
costumeiro humor qualquer pergunta que envolvesse uma pequena aventura dos
nossos tempos de juventude: Lembras-te Gil de como conseguimos a malhadinha,
aquela pomba que querias para o teu pombal? (eu era aficionado columbófilo e
ele ajudava-me a manter a bicharada). Na vida como na escrita, as revessas como
ele as intitula em Lianor ou no Mata-Cães, outras das suas obras, são
constantes. Tão rapidamente estamos ou, melhor, está no agora como recua
dezenas ou centenas de anos para vestir a pele de Colombo ou Gama. Entre o que
desejou ou foi e o que já não é porque afinal não aconteceu como previa,
existem muitos acontecimentos que somos levados a repensar porque deles fomos
testemunhas ou nos ensinaram de maneira muito diversa. Heróis que não o foram
de facto, almas caridosas que apenas exerciam o seu poder sobre espíritos
inocentes para mais facilmente os escravizarem, um mundo e uma história que não
é, nunca foi, aquele em que mesmo os homens que chegaram a ser considerados
seus defensores se reconheceram mais tarde as naturais imperfeições humanas.
Fernando Correia da Silva, sendo o criador e a criatura que faz parte dos seus
romances, consegue a estranha magia de ser um perfeito analista político que
nos revela factos que a ele são exteriores mas nos quais tomou igualmente
parte. E consegue tudo isso com extraordinário rigor, numa forma que nos prende
da primeira à última página de cada um dos seus romances, onde se destacam o
rigor, a crítica e até um certo bom humor que o caracterizava também na vida
real. E por isso a sua obra, o criador e a criatura como Júlio Vera na
Querença, transmitem-nos a noção de que a natureza humana é inalterável e de
que apenas podemos acreditar numa utopia: será que um dia a humanidade atingirá
a igualdade fraterna e universal? Queremos acreditar que acontecerá. Por isso e
para isso vivemos e o recordamos quando lemos as suas obras. Fernando Correia
da Silva está dentro delas.
Para
ler um excerto de QUERENÇA e um poema de COLHEITA, o primeiro livro do autor,
clique aqui
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