SEM MEMÓRIA
Fernando Correia
Este
“Diário de um corpo sem memória”é para além de uma obra de extraordinário valor
literário como aliás era de esperar de um jornalista escritor com muitas provas
dadas a descrição daquilo que poderia existir na memória de Vera, sua mulher,
se não fosse vítima do Alzheimer. Mas será mesmo assim? O que se passará
naquele cérebro doente e que a levará para um mundo desconhecido? Então, para
que seja possível conhecer essa indelével probabilidade, Fernando Correia, como
se Vera o pudesse ouvir, assumiu mesmo no início deste seu livro, dirigindo-se
a ela: “Sou, então, a memória do teu
corpo. A memória que não tens mas que construíste a meu lado, ao longo de todos
os anos de vida em comum.” E um constante e estranho diálogo entre Fernando
e o corpo, apenas o corpo, de Vera vai decorrendo naquele quarto onde a cor
branca enche as quatro paredes estendendo-se à mobília simples e singular, uma
mesa-cómoda e uma cadeira onde ele está sentado aos pés da cama de lençóis
também brancos onde ela está deitada de olhos fixos num além de coisa nenhuma.
E nas visitas diárias que mantém desde há muitos anos, vai contando e transpõe
para as páginas deste seu livro toda a história do grande amor que o ligou a
Vera desde o primeiro dia em que a conheceu ao fazer a entrevista no aeroporto
a uma famosa cantora acompanhada pela sua sobrinha, “uma jovem de 18 anos e bonita a valer”, que viria a ser a mulher da
sua vida, agora doente de Alzheimer. E revivem-se então todos os momentos
daquela vida a dois e mais tarde com as três filhas, momentos felizes e um ou
outro percalço que sempre acontece, tudo ao longo das páginas do seu livro que
Fernando vai contando a Vera. Contando mesmo, pois uma das coisas que muitas
pessoas ignoram é que se deve falar com os doentes naquelas condições e não se
pode afirmar que eles não ouvem. O que se passará realmente naqueles cérebros
que de repente fazem soltar uma ou outra palavra, desajeitada em relação ao
momento, ou um pequeno e momentâneo sorriso? Que alegria para Fernando quando
um dia uma enfermeira do Lar lhe disse que a Vera por vezes rejeitava a sonda
através da qual é alimentada e comia um bolo desfeito. “Vamos ver se ela come” E não é que comeu mesmo? E Fernando
assistiu. A vida é feita de pequenos nadas. E um nada de um doente de Alzheimer
pode ser o muito para os familiares. É esta assistência que Fernando deseja
incentivar nos familiares e por isso escreve o seu livro. Ele está com Vera no
limitado presente que é possível e rememora todo um passado para que ela
eventualmente o oiça. Foram as viagens que fizeram, os bares e restaurantes que
tiveram, as férias que passaram, os encontros com amigos, alguns que conhecemos
como Carlos do Carmo, ou então conta-lhe novidades sobre as filhas e também
sobre os netos que muitas vezes perguntam pela Avó. Entretanto Fernando é
convidado pela madre superiora da Casa de Saúde a fazer uma estação de rádio
onde teriam lugar os próprios doentes com capacidades cognitivas suficientes
para a manter contribuindo mesmo para ajudar outros doentes. Para um grande
jornalista desportivo, voz presente em muitas das nossas estações de rádio e na
televisão ele refere como contou a Vera o seu entusiasmo. Infelizmente também
lhe viria a contar que um vírus que tinha vindo da China chegara a Portugal e
estava a preocupar as pessoas e o governo, até que chegou mesmo o dia em que
foi decretado o confinamento e proibidas visitas aos lares, o que iria impedir
que ele a visitasse. E a partir dessa data passou mesmo a contar-lhe o número
de mortos e de novos casos que iam acontecendo até ao dia do fecho deste
diário. Mas Fernando Correia consegue muito mais neste seu livro que é dividido
em 28 capítulos preenchendo duas partes que intitulou de História e Distância,
a primeira dedicada especificamente à história dele com a Vera e a segunda que
é caracterizada pela distância que os separa quando da impossibilidade de a
visitar devido às medidas que ocorrem com a chegada da pandemia. Cada capítulo
tem o seu título e também um poema, alguns versos ou uma simples frase, alusivos
ao conteúdo, de um poeta de língua portuguesa ou uma figura mundial. E assim vão
desfilando nomes como António Gedeão, Florbela Espanca, Álvaro de Campos, Natália
Correia, José Saramago ou mesmo Martin Luther King, Mahatma Gandhi, Gabriel
Garcia Marquez e até Luís de Camões. Extraordinário trabalho de Fernando
Correia que demonstra também nesta sua obra, sobretudo na segunda parte, algo
que já sabíamos. Trata-se da sua capacidade para analisar alguns dos problemas
com que a humanidade se defronta. Ele interroga-se sobre o que é o universo e
chega a declarar-se uma espécie de um “todo” como se o ser humano fosse formado
por um corpo vivo que incluísse em si mesmo a própria morte e esta não fosse
tão simples como algo inexplicável que se escondesse apenas num além
desconhecido. E faz um apelo para que todos vivam a natureza porque na verdade
todos são exactamente parte dela. A doença de Vera, o que lhe aconteceu quando
de repente devido a uma súbita trombose ocular perdeu a visão do olho direito,
um estranho vírus que provoca milhares de mortos em todo o mundo, a fome que
atormenta muitas populações, tudo isso e muito mais é analisado por Fernando
Correia com uma enorme lucidez e não deixa de pedir para que saibamos olhar à
nossa volta e ver os que precisam, os que sofrem, os que choram, os que estão
doentes, os que não usufruem até daquele pedaço muito pequenino de esperança
que alguns de nós possuem. Chegou a hora de olhar para os nossos doentes ou
simplesmente idosos não lhes negando aquela palavra de conforto que os ajuda a
suportar os seus males e quem sabe a curar muitos deles. Grande livro sem
dúvida este que Fernando Correia acaba de nos trazer. E quantas verdades sobre
o que fazemos e não devíamos fazer mas também do que devemos fazer para o
futuro que nos espera sempre ao dobrar da esquina da vida de cada um de nós. E
como no final da minha referência ao teu primeiro livro sobre o drama da tua
Vera, volto a dizer Obrigado Fernando. Que venham mais livros. O teu público
agradece.
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