Não se pretende fazer aqui crítica literária. Sou um cidadão do mundo que sente amor natural pelos livros. Na minha casa as paredes estão cobertas pelos livros. E falo com eles ou melhor eles falam comigo como se fossemos grandes amigos. Revelam-me os seus segredos e os conhecimentos dos seus autores ou contam-me histórias onde se inscrevem valores humanitários universais.

São ensaios, romances, contos e narrativas, peças de teatro, clássicos e modernos, mas também sobre o ambiente ou tecnologias úteis no nosso dia-a-dia. São obras que fazem parte da minha paixão pelos livros e que humildemente indicamos como sinal e guia para quem deseje conhecer conteúdos que julgamos dignos e fiáveis.

E porque desejo transmitir uma análise que embora pessoal seja minimamente correcta nem sempre consigo manter a actualidade que seria normal se a falta de tempo por abraçar outras actividades não o impedisse. Mas aqui estarei sempre que possa.

Gil Montalverne


DIÁRIO DE
 
UM CORPO

SEM MEMÓRIA

Fernando Correia


Este “Diário de um corpo sem memória”é para além de uma obra de extraordinário valor literário como aliás era de esperar de um jornalista escritor com muitas provas dadas a descrição daquilo que poderia existir na memória de Vera, sua mulher, se não fosse vítima do Alzheimer. Mas será mesmo assim? O que se passará naquele cérebro doente e que a levará para um mundo desconhecido? Então, para que seja possível conhecer essa indelével probabilidade, Fernando Correia, como se Vera o pudesse ouvir, assumiu mesmo no início deste seu livro, dirigindo-se a ela: “Sou, então, a memória do teu corpo. A memória que não tens mas que construíste a meu lado, ao longo de todos os anos de vida em comum.” E um constante e estranho diálogo entre Fernando e o corpo, apenas o corpo, de Vera vai decorrendo naquele quarto onde a cor branca enche as quatro paredes estendendo-se à mobília simples e singular, uma mesa-cómoda e uma cadeira onde ele está sentado aos pés da cama de lençóis também brancos onde ela está deitada de olhos fixos num além de coisa nenhuma. E nas visitas diárias que mantém desde há muitos anos, vai contando e transpõe para as páginas deste seu livro toda a história do grande amor que o ligou a Vera desde o primeiro dia em que a conheceu ao fazer a entrevista no aeroporto a uma famosa cantora acompanhada pela sua sobrinha, “uma jovem de 18 anos e bonita a valer”, que viria a ser a mulher da sua vida, agora doente de Alzheimer. E revivem-se então todos os momentos daquela vida a dois e mais tarde com as três filhas, momentos felizes e um ou outro percalço que sempre acontece, tudo ao longo das páginas do seu livro que Fernando vai contando a Vera. Contando mesmo, pois uma das coisas que muitas pessoas ignoram é que se deve falar com os doentes naquelas condições e não se pode afirmar que eles não ouvem. O que se passará realmente naqueles cérebros que de repente fazem soltar uma ou outra palavra, desajeitada em relação ao momento, ou um pequeno e momentâneo sorriso? Que alegria para Fernando quando um dia uma enfermeira do Lar lhe disse que a Vera por vezes rejeitava a sonda através da qual é alimentada e comia um bolo desfeito. “Vamos ver se ela come” E não é que comeu mesmo? E Fernando assistiu. A vida é feita de pequenos nadas. E um nada de um doente de Alzheimer pode ser o muito para os familiares. É esta assistência que Fernando deseja incentivar nos familiares e por isso escreve o seu livro. Ele está com Vera no limitado presente que é possível e rememora todo um passado para que ela eventualmente o oiça. Foram as viagens que fizeram, os bares e restaurantes que tiveram, as férias que passaram, os encontros com amigos, alguns que conhecemos como Carlos do Carmo, ou então conta-lhe novidades sobre as filhas e também sobre os netos que muitas vezes perguntam pela Avó. Entretanto Fernando é convidado pela madre superiora da Casa de Saúde a fazer uma estação de rádio onde teriam lugar os próprios doentes com capacidades cognitivas suficientes para a manter contribuindo mesmo para ajudar outros doentes. Para um grande jornalista desportivo, voz presente em muitas das nossas estações de rádio e na televisão ele refere como contou a Vera o seu entusiasmo. Infelizmente também lhe viria a contar que um vírus que tinha vindo da China chegara a Portugal e estava a preocupar as pessoas e o governo, até que chegou mesmo o dia em que foi decretado o confinamento e proibidas visitas aos lares, o que iria impedir que ele a visitasse. E a partir dessa data passou mesmo a contar-lhe o número de mortos e de novos casos que iam acontecendo até ao dia do fecho deste diário. Mas Fernando Correia consegue muito mais neste seu livro que é dividido em 28 capítulos preenchendo duas partes que intitulou de História e Distância, a primeira dedicada especificamente à história dele com a Vera e a segunda que é caracterizada pela distância que os separa quando da impossibilidade de a visitar devido às medidas que ocorrem com a chegada da pandemia. Cada capítulo tem o seu título e também um poema, alguns versos ou uma simples frase, alusivos ao conteúdo, de um poeta de língua portuguesa ou uma figura mundial. E assim vão desfilando nomes como António Gedeão, Florbela Espanca, Álvaro de Campos, Natália Correia, José Saramago ou mesmo Martin Luther King, Mahatma Gandhi, Gabriel Garcia Marquez e até Luís de Camões. Extraordinário trabalho de Fernando Correia que demonstra também nesta sua obra, sobretudo na segunda parte, algo que já sabíamos. Trata-se da sua capacidade para analisar alguns dos problemas com que a humanidade se defronta. Ele interroga-se sobre o que é o universo e chega a declarar-se uma espécie de um “todo” como se o ser humano fosse formado por um corpo vivo que incluísse em si mesmo a própria morte e esta não fosse tão simples como algo inexplicável que se escondesse apenas num além desconhecido. E faz um apelo para que todos vivam a natureza porque na verdade todos são exactamente parte dela. A doença de Vera, o que lhe aconteceu quando de repente devido a uma súbita trombose ocular perdeu a visão do olho direito, um estranho vírus que provoca milhares de mortos em todo o mundo, a fome que atormenta muitas populações, tudo isso e muito mais é analisado por Fernando Correia com uma enorme lucidez e não deixa de pedir para que saibamos olhar à nossa volta e ver os que precisam, os que sofrem, os que choram, os que estão doentes, os que não usufruem até daquele pedaço muito pequenino de esperança que alguns de nós possuem. Chegou a hora de olhar para os nossos doentes ou simplesmente idosos não lhes negando aquela palavra de conforto que os ajuda a suportar os seus males e quem sabe a curar muitos deles. Grande livro sem dúvida este que Fernando Correia acaba de nos trazer. E quantas verdades sobre o que fazemos e não devíamos fazer mas também do que devemos fazer para o futuro que nos espera sempre ao dobrar da esquina da vida de cada um de nós. E como no final da minha referência ao teu primeiro livro sobre o drama da tua Vera, volto a dizer Obrigado Fernando. Que venham mais livros. O teu público agradece.

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