Não se pretende fazer aqui crítica literária. Sou um cidadão do mundo que sente amor natural pelos livros. Na minha casa as paredes estão cobertas pelos livros. E falo com eles ou melhor eles falam comigo como se fossemos grandes amigos. Revelam-me os seus segredos e os conhecimentos dos seus autores ou contam-me histórias onde se inscrevem valores humanitários universais.

São ensaios, romances, contos e narrativas, peças de teatro, clássicos e modernos, mas também sobre o ambiente ou tecnologias úteis no nosso dia-a-dia. São obras que fazem parte da minha paixão pelos livros e que humildemente indicamos como sinal e guia para quem deseje conhecer conteúdos que julgamos dignos e fiáveis.

E porque desejo transmitir uma análise que embora pessoal seja minimamente correcta nem sempre consigo manter a actualidade que seria normal se a falta de tempo por abraçar outras actividades não o impedisse. Mas aqui estarei sempre que possa.

Gil Montalverne

E SE EU FOSSE DEUS?

Fernando Correia


Mais uma vez estamos perante uma obra demonstrativa da grande sensibilidade de um autor, meu amigo e camarada de trabalho de muitos anos na então Emissora Nacional, jornalista e escritor com muitas obras publicadas entre as quais duas que estão neste espaço que criei na Net. Mas é também o comentador desportivo na Rádio e Televisão com milhares de admiradores que não perdem as suas regulares intervenções, professor na área da Comunicação Social, enfim um homem de extraordinárias qualidades. Só assim se compreende que tenha acompanhado um sem-abrigo por todos os locais – e são muitos infelizmente – onde se abrigam em Lisboa a enorme quantidade desses desprotegidos que não têm as mínimas condições de vida que afinal até lhes estariam garantidas pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e nomeadamente pela nossa Constituição. O Fernando acompanha Henrique, um sem-abrigo que todos os dias via passar na sua rua, quase sempre à mesma hora. Era um homem alto, um pouco curvado, passo cadenciado, caminhando como se fosse para o emprego que depois veio a saber-se que não tinha. Aliás Henrique não tinha emprego, não tinha casa, não tinha família, quase podendo dizer-se que não tinha nada. Mas afinal tinha tudo o que necessitava. Tinha o sol, as árvores, o próprio céu como teto dos locais onde dormia. E é Henrique, sentado num seu banco habitual do Jardim do Alto de Santo Amaro, que depois do Fernando o abordar, perguntando-lhe se podiam conversar, lhe responde com uma outra pergunta: Costuma conversar com Deus? A partir daí, Henrique, confessando não ser crente, confessa isso sim que se fosse Deus, faria deste mundo um mundo diferente. E isso seria possível se todos os homens quisessem, se fossem mais solidários, se como governantes tomassem medidas para evitar que continuassem a existir pobres, sem-abrigo, drogados, alcoólicos, analfabetos, a exploração de menores, a prostituição feminina e masculina, o desemprego, a fome, os doentes sem possibilidade de se tratarem, o abandono dos velhos em lares e muito mais daquilo que alguém, a quem chamam deus, permite afinal que encham as ruas, os vãos de escada, pequenos locais mais abrigados, toda a miséria que está patente nesta e noutras cidades, como aliás pode mostrar. E é então que Fernando Correia é conduzido por Henrique a locais como Monsanto e os esconderijos que por lá existem, algumas estações ferroviárias que por vezes permitem que lá pernoitem os sem-abrigo, uma espécie de submundo que a maioria de nós ignora ou faz por ignorar, trocando por uma esmola deixada cair num velho chapéu à beira de um qualquer passeio aquilo a que chama a sua consciência, ficando de bem com ela e provavelmente com a tal entidade a que chama Deus. Não. Henrique interroga-se e convida os outros a fazerem a mesma pergunta: E se eu fosse Deus? Henrique teve estudos, um emprego que a certa altura lhe tiraram e até uma casa onde viveu com a sua mulher que inexplicavelmente o abandonou. Percorrendo as ruas de Lisboa, Henrique vai mostrando a Fernando os locais onde vivem os sem-abrigo cujas histórias conhece e que merecem ser mais conhecidas pelos leitores do livro que ele sabe que Fernando vai escrever. São testemunhos fantásticos, quase inimagináveis, comoventes mas poderosos para que possamos criar dentro de nós próprios uma maior força de solidariedade. Henrique sugeriu ao autor que fosse com ele numa noite de Natal às visitas efectuadas regularmente aos domingos às estações das Gares do Oriente, Santa Apolónia e Rossio por um grupo de voluntários que distribui alimentos aos sem-abrigo que ali se acolhem. Fernando Correia conta-nos como foi possível assistir a momentos de grande alegria e felicidade mostrados naqueles rostos que diariamente nos aparecem nas nossas ruas solicitando ajuda. Mas era Natal e até houve lugar para prendas. Henrique não precisa de prendas. A única coisa que ele precisa e muito gostaria de alcançar era acabar com a falta de solidariedade que vê à sua volta. Como é possível que os responsáveis por este mundo que ele nos mostra através da lúcida escrita de Fernando Correia nada façam para que esta verdadeira calamidade desapareça. Por isso se interroga: E se eu fosse Deus?
Henrique levou o autor a conhecer de perto, entre outras, a história de Marília, de Natália, do Zé Maria, do Zeca e da Zélia, do Ti Chico e da sua Rosa, apenas alguns dos muitos sem-abrigo com os quais convivia. São testemunhos comoventes mas cheios daquela verdade que  nos mostra a indiferença das entidades governamentais perante uma verdadeira calamidade social. Este livro, as histórias que Henrique nos conta sobre o modo como vivem alguns sem-abrigo como ele, mas sem a sua capacidade de as enfrentar, rolando cada vez mais para uma sub-vida ou socorrendo-se da droga e da prostituição, as suas consequências na doença e até na perda de certas faculdades mentais, merece ser lido por todos os que sintam o desejo de melhorar de facto a humanidade fornecendo talvez o caminho para um mundo melhor.                                              

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CENAS DA VIDA AMERICANA

Clara Ferreira Alves


Confessando o quanto admiro a escritora e jornalista Clara Ferreira Alves, tomo a liberdade, que nunca fiz, de reproduzir a cinta que cobre esta sua obra para início do que farei o possível por dizer sobre o seu conteúdo. De facto está ali tudo o que a autora nos vai contar. “Estes são os dias da América: o poder do dinheiro, os bastidores da política, as malhas da guerra, o quotidiano dos que não têm voz”. Clara Ferreira Alves, como aliás tem referido por várias vezes nos seus artigos e em intervenções televisivas, conhece bem a América, o nome pelo qual são designados os Estados Unidos da América. Percorreu todos os estados de uma costa à outra, desde 1980 até aos dias de hoje. Em muitas das cidades permaneceu durante vários dias e teve a possibilidade de avaliar o modo de viver do povo americano, não deixando de notar que desde Reagan até aos dias de hoje com Trump, os presidentes não conseguiram fazer desaparecer o grande fosso que divide ricos e pobres. Afinal a América da Liberdade, o país tantas vezes desejado por aqueles que acreditavam que ali iriam encontrar um futuro radioso para si e muitas vezes também para a família, vive do poder do dinheiro infiltrado nos bastidores da política. Chegavam pobres, pensando poder ali viver com alguma dignidade e segurança quando na maior parte das vezes ficavam pior do que nos seus países de origem. Clara Ferreira Alves encontrou muitos desses emigrantes em pequenas cidades do interior de muitos dos estados. O sonho americano que eles imaginavam que iriam encontrar naquele país não chegara a concretizar-se. A autora analisa, investiga as possíveis razões e leva-nos a percorrer como era a América nos dias de Reagan, dos Bush, de Clinton, mesmo de Obama e até como vai ela com o actual Trump. Assistimos ao verdadeiro desenrolar dos episódios conhecidos durante esses vários mandatos. Mas esta obra consegue descrever-nos com a exactidão da veia jornalística, não só o como, mas também a razão porque aconteceram as inúmeras cenas que apenas todos nós conhecíamos das notícias que foram sendo divulgadas durante todos esses anos. E sem qualquer sombra de dúvida é possível concluir como afinal estas cenas da vida americana nos revelam ser sempre o poder do dinheiro dos mais ricos que, como sempre, acaba por vencer e deixa sem o mínimo conforto os que não conseguiram alcançar o ambicionado sonho americano, velhos vagabundos, drogados, negros e brancos desempregados e também mulheres. Mulheres, muitas mulheres sem família, sem filhos, que os maridos abandonaram para tentar qualquer outro caminho que aquela América lhes negou, deixando-as em perfeita miséria, sujeitas aos piores sacrifícios que nunca pensaram ter de suportar. É verdade que a autora não nega, como afirma peremptoriamente, que a América salvou a Europa em momentos da história em que tudo parecia ruir neste nosso continente. E de tal modo isso foi verdade que o século XX chegou a ter o nome de século americano. Em Nova York persiste uma vida turbulenta que nos dá a ideia de que tudo vai bem. As grandes salas de espectáculo enchem-se das elites que sempre persistiram. E os bons restaurantes não faliram, pelo menos por enquanto. É lá que uma certa gentalha se reúne para combinar as grandes fraudes. Central Park ainda existe. Aliás sempre existiu. Mas de dia é uma coisa diferente do que ali se passa de noite. Não é seguro. Por lá proliferam os vagabundos e assaltantes. Nós próprios assistimos a isto quando lá estivemos certa vez em serviço. E já havia gente sentada nos degraus das portas de saída de muitas casas, estendendo a mão, pedindo uma esmola que cairia ou não no chapéu colocado à sua frente. Assistimos a isto em muitas ruas não muito longe do centro de Nova York. Também eu fiquei desiludido nesse tempo, antes dos anos que Clara Ferreira Alves nos conta nesta sua obra que reúne muitos dos artigos que publicou desde 1980. E parece que no essencial nada mudou. Estas suas “Cenas da Vida Americana” servem de facto para ficarmos a conhecer melhor o que é a América. Não conseguimos transmitir aqui com muito pormenor a mais pequena ideia de uma tão vasta história. Apesar do que nós próprios podermos ter visto, tudo o que sabíamos da América ficou agora totalmente transformado naquilo que constitui a verdade vivida por Clara Ferreira Alves. Claro que termina com a análise possível do que acontece presentemente com Trump, o homem que segundo ela “quer destruir o sistema, o amante da força bruta e da guerra total, o ditador dos media, o Goebbels de uma ópera bufa, a crueldade claramente vista”. Aconselhamos vivamente esta leitura.

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UMA ESPERANÇA MAIS FORTE
DO QUE O MAR

Melissa Fleming


Este livro é um verdadeiro livro de amor, apesar de relatar uma tragédia e sobrevivência de uma refugiada. Se alguém perguntar como pode ser um livro de amor, basta dizer que essa refugiada antes de iniciar a viagem para fugir da Síria teve momentos com provas de grande amor quer pelo seu país martirizado como pelos seus familiares. Já também depois de iniciada a viagem encontrou um homem pelo qual se apaixonou e que viria a auxiliá-la para poderem continuar a fuga, embora algo de muito dramático tenha acontecido até chegar ao primeiro país da Europa que a levaria finalmente ao destino ambicioso de alcançar a Suécia onde reside actualmente, depois de ter perdido tudo e todos.
A autora Melissa Flemming é Directora de Comunicação e a porta-voz do Alto Comissariado das Nações unidas para os Refugiados e teve conhecimento da história da refugiada através do website grego. Sempre atenta a relatos de sobrevivência que demonstrem o drama dos refugiados e que possam transmitir ao público que apenas conhecem as notícias dos jornais, embora também estas elucidativas, a necessária empatia para que todos possamos contribuir com qualquer parcela de auxílio que esteja ao nosso alcance para acabar com o drama dos refugiados, Melissa procurou pelos meios ao seu alcance conhecer a refugiada Doaa quando ainda se encontrava em recuperação num hospital em Atenas. Na posse de diversos artigos, fotografias e relatos entretanto publicados na imprensa ateniense e não só, o livro dá-nos a conhecer a verdadeira história de Doaa que conseguiu, apesar de momentos de grande sofrimento ao relembrar factos passados e alguns deles muito recentes como a do naufrágio em que conseguiu resistir até ser recolhida pelos tripulantes de petroleiro que navegava no Mediterrâneo em direcção a Gibraltar que ficaram surpreendidos com a enormidade de cadáveres a boiar à superfície mas também o que lhes parecia serem os gritos de socorro que alguém gritava mais alem. Era Doaa pedindo socorro para duas meninas que segurava nos braços enquanto se agarrava à pequena bóia de que dispunha.
Neste livro que António Guterres classifica como de “Um livro admirável de uma autora que não o é menos”, é contada toda a história de Doaa desde a sua infância feliz na Síria quando este país ainda era um lugar pacífico até à actualidade, e devemos salientar que em 2016 Doaa Al Zamel recebeu o prémio OFID 2016 para o Desenvolvimento, atribuído pela OPEP, pela sua coragem e determinação. Tal como ela própria declara em “Nota de Doaa” no final do livro, “partilhou nele o seu sofrimento”. Trata-se apenas de uma pequena amostra das provações e da dor que os refugiados espalhados pelo mundo têm se suportar e de enfrentar. Sou apenas uma voz entre os milhões que, todos os dias, arriscam a vida para conseguir viver com dignidade.” E é isto na verdade o que podemos ler neste livro, juntando-lhe os episódios trágicos de alguém que apenas deseja encontrar um lugar onde fosse possível viver em paz, onde as crianças não morressem de fome ou por balas indiscriminadamente disparadas pelos grupos terroristas. E também as falsas promessas, pagas a peso de ouro com todas as suas economias, para conseguirem um lugar numa frágil embarcação que depois os traficantes desumanos e criminosos abandonam a meio do mar, sem combustível para alcançar terra firme, muitas vezes acabando mesmo por naufragar. Dir-se-á que todos sabemos desta tragédia dos refugiados, que nos revolta e lamentamos. Mas aqui, neste livro, temos um rosto que vamos acompanhando, uma história que parece decorrer a nosso lado, um exemplo bem real de todos os milhares de refugiados aos quais acontecerá algo semelhante que enchem os noticiários e os artigos dos jornais. Sim sabemos que alguns refugiados alcançam as praias do sul da Europa e vão ficando em acampamentos, deficientemente alojados, até que possam arranjar a desejada licença para alcançar um país que os receba, nomeadamente o nosso. Mas o que encontramos neste livro é toda a história da luta pela sobrevivência de uma refugiada, contada por uma admirável escritora. Ficamos mais conscientes do que é o drama dos refugiados. E isso é importante.

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