PISO 3
QUARTO
313
Fernando Correia
Apetece-me
dizer que este é mais um livro que não devia ter sido escrito. E no entanto é
um livro admiravelmente escrito por um grande amigo. Mas para que não tivesse
sido escrito era necessário que ele não sofresse, que neste nosso mundo não
existissem dores e que tudo fosse perfeito, não existindo doenças como aquela
que atingiu sua mulher, para as quais se aguarda uma cura que tarda em aparecer. E assim, como aliás tem
sido dito e escrito, houve a coragem de o escrever e, sendo um livro nascido da
dor, pode transmitir algum consolo e felicidade. Fernando Correia, meu
companheiro de tantos anos, a voz da Rádio Portuguesa que toda a gente conhece,
o talentoso homem do desporto e da Televisão, cujos relatos e comentários dos
acontecimentos desportivos são ouvidos por muitos milhares de pessoas que,
antes de o saberem, nestes dias mais recentes, não imaginavam o que se escondia
há já alguns anos na sua vida íntima, perante o terrível Alzheimer que atinge a sua
mulher, teve também a coragem de nos revelar neste livro a sua dolorosa
experiência num confessado intuito de ajudar todos os que se confrontam com
esta doença nos seus familiares mas também preparando aqueles que ainda não
conhecem os seus efeitos. Afinal, contrariamente aos meus desejos, este livro
tinha mesmo de existir. Que Fernando Correia era, para além de homem do
desporto, um notável escritor com obras de carácter desportivo mas igualmente
ensaios, biografias, contos, etc. num total de mais de três dezenas de títulos,
já alguns de nós sabíamos. Outros eventualmente, mais longe da literatura e
seus autores, não lhe conheciam tais qualidades. E é com essa qualidade de
primoroso escritor que ele consegue dar-nos agora, rompendo contra a anterior
reserva, autorizado que foi pela restante e numerosa família, uma obra ímpar
mais do que necessária pela ajuda que certamente vai trazer a muitos leitores.
Criterioso nos mais pequenos pormenores, ele relata os momentos vividos com
Vera, sua mulher, desde que se começou a notar que alguma coisa de anormal
acontecia, os desvios de atenção, a falta de memória, os gestos e palavras
destituídos do momento em que se davam e portanto despropositados, depois as
insónias, as irritações e zangas inesperadas, mais tarde aquele olhar para o
vazio e a tudo vamos assistindo com o seu relato informal mas exacto. Depois as
visitas aos médicos, o inevitável internamento para a tentativa da recuperação
cognitiva, quando o mundo de Vera já não era o nosso nem o de Fernando, nem o
das filhas. Ela vivia numa outra onda sem poder sentir o mundo à sua volta. Mas
a recuperação como em tantos outros casos teve o desfecho que ele apesar de
tudo não esperava. Nem Vera talvez. Nada se conseguiu. E portanto só era
possível o internamento naquele “Quarto 313”
do Piso 3. E aí temos então, desde esse momento até hoje todo o desenrolar do
que são os dias intermináveis de Vera, passando pela necessidade de continuar a
conviver com um dispositivo especial para se alimentar pois tinha perdido a
vontade natural de o fazer. Mais tarde, num acesso de raiva ou desespero, viria
a revolta de o arrancar e curiosamente, depois do recobro da anestesia para lhe
ser colocado um novo dispositivo, acordou com fome e murmurou “comida”. Que
alegria para Fernando e toda a família que tentavam festejar ali na Casa de
Saúde o dia dos seus anos! Ele correu ao bar, comprou a sanduíche de queijo que
ela acabaria por comer pela sua própria mão. Diz o poeta, algures, que “a vida
é feita destes pequenos nadas”. Noutro contexto, claro, Fernando Correia vive
estes pequenos nadas de um regresso de Vera. E são muitos os que nos vai
contando neste livro maravilhoso, confessando a importância que isso tem não só
para ele e para as filhas, como também – quem sabe – para a própria Vera. Ele
vive sempre na esperança de que algo virá a acontecer. E para isso, é
necessário transmitir essa mesma esperança aos doentes de Alzheimer, mesmo que
pareça que não nos compreendem, que não nos reconhecem e nada nos digam,
murmurando simples monossílabos que são talvez as suas palavras naquele mundo
estranho onde não conseguimos entrar. Para além da experiência e da dolorosa
história do autor, no confronto com a realidade da terrível doença que atinge a
sua mulher, encontramos toda uma série de informações que ele foi recolhendo na
tentativa de saber mais e mais sobre possíveis causas, meios de atenuar os
sofrimentos vividos pelos doentes, as investigações em curso para alcançar a
cura num futuro que se deseja para amanhã, não perdendo nunca a esperança de que
chegue a tempo para os que dela precisam já hoje. É portanto também um livro de
grande utilidade para os que estejam a viver esse drama de acompanhar alguém
com a doença ou preparando-nos para a eventualidade, até ao momento de causa
inexplicável, de que o mesmo venha a acontecer. Uma coisa nos ensina, se é que
para muitos é necessário lembrar, sabemos muito pouco sobre a maneira como
funciona o cérebro humano. Embora atingido por uma qualquer grave afecção que
impede por exemplo a comunicação normal com quem contacta, não deixa de
pertencer a um ser, nosso semelhante, que está vivo e necessita da nossa
presença e do nosso auxílio. E isso aprendemos se ainda o não sabíamos. Muito
do que Fernando Correia admirou e amou em Vera continua nela. Relendo algo das
palavras do Professor Manuel Sérgio no prefácio, este livro é uma preciosidade
para as “famílias que tenham, no seu seio, um doente de patologia igual ou
semelhante”. Fernando Correia, o jornalista e escritor que o país inteiro
admira e aplaude, escreveu-o num acto que não só o liberta de pequenos erros
que então julga ter cometido (e quem o poderá julgar?), para que não se
repitam, para que melhor se possam acompanhar os doentes de Alzheimer, fazendo
o que agora faz juntamente com as filhas e mesmo com os pequenos netos, mas
também porque é um homem extremamente generoso, como aliás sempre o conhecemos
na vida profissional que tivemos lado a lado. Importante também é a esperança
que nunca o abandona de que a solução chegará um dia. E então voltarão os dois
a sorrir. No final do seu livro, acompanhando um poema de Ary dos Santos, amigo
comum, e também numa espécie de premonição ao drama que hoje vivem, ele diz:
“Estou aqui, Vera. A sorrir para ti”. E eu, meu grande amigo, fazendo uma
excepção ao que é habitual escrever aqui digo também: Obrigado Fernando. Esse
dia há-de chegar!
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